Apresentação de Gonçalo Cordeiro Ferreira no lançamento do livro Contributo para a História da Pediatria em Portugal, na Biblioteca da Ordem dos Médicos, no passado dia 6 de Julho de 2022.

Começo com uma declaração apropriada para estes dias do socialmente correto. A famosa isenção de conflito de interesses. Pois aqui não há essa isenção. Há despudoradamente um conflito de interesses porque tenho por ambos os autores desta obra laços antigos de admiração profissional e amizade. E aqui o digo bem alto e com orgulho.

Estar nesta casa a falar de uma história da Pediatria portuguesa traz-me também recordações cheias da minha própria história na pediatria. Foi aqui que me fiz especialista, num abafado mês de Julho de 1990, faz pois precisamente 32 anos, num edifício recém adquirido pela Ordem dos Médicos , ainda com caixotes por abrir pelas salas e com mobiliário rudimentar, num grupo animado em que se incluíam entre outros mais velhos, um punhado de internos da Estefânia que se permitiam apresentar-se ao exame para o título de especialista de Pediatria antes de terem feito o exame de saída no seu hospital. Isto era considerado na altura um ato imprudente e até impudente. Mas correu bem. E quando algumas semanas depois lá fizemos o exame de saída regulamentar no Hospital Dona Estefânia, o presidente do júri foi precisamente o Prof. João Videira Amaral, o qual haveria de repetidamente ao longo da minha carreira hospitalar, ser em múltiplos concursos avaliador (e atrevo-me a dizer avalizador) do meu percurso. E como isto anda tudo ligado lembro-me como se fosse hoje que naquele exame de saída a prova prática consistia em fazer a história clínica e discussão de dois doentes : um era tradicionalmente o complicado – a “pièce de resistance”- o outro um Recém Nascido normal para, por assim dizer, despachar serviço. Foi assim, após ter recolhido os dados do primeiro doente , que me desloquei para a maternidade Magalhães Coutinho imbuído desse espírito do pro-forma. Quem me fornece elementos da história do Recém Nascido, supostamente saudável e rechonchudo, foi precisamente a Prof.ª Teresa Neto, à altura uma jovem assistente da Neonatologia. A coisa seria, como tradicional, simples e indolor, mas eis que a vejo, ao começar a ler o processo do bebé, a hesitar e a ficar mais pálida. Pressinto o pior e confirmou-se. O Recém Nascido normal era afinal uma trapalhada das boas, com serologias positivas para a toxoplasmose durante a gestação, o que daria uma bela e inesperada discussão clínica e um infindável tempo para a escrever, ainda por cima atormentado pelo primeiro caso, o dito mais complicado. A adrenalina levou a melhor e a coisa fez-se, mas a Teresa ficou claramente pior do que eu. Uma amostragem prática da sua generosidade e companheirismo.

Mas vamos à missão do dia, a apresentação deste “Contributo para a história da Pediatria em Portugal”, para a qual agradeço a confiança dos autores e editora.

E faz falta conhecer essa história em momentos em que o passado se esquece tão depressa, e em que vivemos no presente sempre debruçados no futuro, ou como disse Miguel de Unamuno “Procuremos ser mais pais do nosso futuro que filhos do nosso passado”

Só que como disse no prefácio deste livro: quem não sabe do seu passado não entende as ameaças do futuro. A história (e direi em todos os campos) ensina-nos que nada deve ser dado como adquirido. O que tanto custou a ganhar perde-se num instante de desatenção.

E a história da Pediatria no mundo e em Portugal é a história dos que lutaram para dar á criança um lugar no palco da sociedade.

E não foi fácil. A criança durante tempos imemoriais não existia como tal. Mesmo na Bíblia, a maior referência é a do pequeno Isaac oferecido pelo seu pai o senescente Abraão para o sacrifício, que só é evitado no derradeiro instante pelo Todo Poderoso que suspende o cutelo paternal. É certo que no novo testamento Cristo, que revolucionou tempos e hábitos, tem uma visão mais desempoeirada da infância e, segundo  Mateus 19:14, diz aos discípulos que afastam os petizes para não O incomodar: deixai vir a mim os pequeninos pois o Reino dos Céus pertence aos que são semelhantes a eles”.

Seria o dos céus mas não certamente o da terra, vendo o exemplo da antiguidade clássica como em Esparta em que os filhos varões são retirados ás mães à nascença e se pratica o infanticídio como forma de seleção dos mais vigorosos. E na Idade Média as crianças vestem-se como adultos, comem (quando comem) o que os adultos comem, trabalham como adultos e morrem muito mais que os adultos.

Foi apenas pelo Renascimento que, ao colocar o Homem no centro do debate, a criança quase por arrasto passa a ter um foco próprio (o homem renasce e a criança nasce). Começa a ter roupas diferentes, comida própria, a ser ensinada (alguns) em aulas com pares da mesma idade, a ter direito ao brincar e ao brinquedo. É também a altura em que a Igreja glorifica a infância como a idade da inocência, a criança anjo que vai direta para o céu, trajeto aliás muito congestionado pela mortalidade infantil. O Iluminismo, o século da luzes também projeta outra luz na criança e realça o papel da infância e da necessidade de uma educação livre de artificialismos da sociedade, como no Emilío de Rousseau. Mas a revolução industrial é novamente um tempo de grande provação para a criança, sujeita a temíveis condições de insalubridade nos bairros operários que se formavam nas grandes metrópoles. Vem daí a designação proletário – o assalariado industrial que só tinha como propriedade  uma larga prole de filhos (de que era dono e senhor) dos quais os poucos que sobreviviam representavam o sustento dos pais quando a sua breve vida útil de trabalhador acabasse , pois não dispunham de qualquer sistema de pensão de velhice ou invalidez. Foi nessas terríveis condições, propícias às mais variadas doenças infeciosas e carências nutricionais que , no fim do século XIX, começam a aparecer, muitas vezes ocupando antigos hospícios, os primeiros hospitais pediátricos. E os médicos que aí trabalhavam começam a especializar-se nas doenças da infância (são os primeiros Pediatras).

Estes hospitais nascem (como bem é referido no livro) mais duma necessidade que duma aspiração. As crianças incomodam os adultos internados em conjunto com elas, e não sendo auto suficientes precisam de quem delas cuide – têm de ser alimentadas e mudadas – (o que é espantoso é que ninguém concebeu que o problema ficaria resolvido se deixassem as mães permanecer com elas durante todo o tempo de internamento, o que lhes esteve vedado até muito recentemente).

Os médicos desses hospitais começam pois a desenvolver conhecimentos e aptidões clínicas próprias para esses doentes. A maior metáfora da Pediatria: a criança não é um adulto pequeno – nasce do reconhecimento dessa diferença fisiológica, fisiopatológica e psicológica e estabelece a fundação de uma Medicina para um grupo etário (ou deveríamos dizer uma medicina para diversos grupos etários pois um adolescente não é um RN gigante). Mas ao longo do tempo outras metáforas vão sendo construídas e desconstruídas para explicar o papel do Pediatra e da Pediatria: A metáfora do veterinário “Não há grande diferença entre o estudante que tem de investigar as doenças das crianças e o que tem de lidar coma s dos animais inferiores. Em ambos os casos o diagnóstico repousa principalmente na capacidade pessoal do médico de observação e examinação. Em ambos os casos o que está em falta é a linguagem inteligível”. Sir James Goodhart; Diseases of Children: 1885

Ou a metáfora do explorador em terra estranha: “Ao estudar os diferentes estádios do desenvolvimento da criança, estamos na realidade a adquirir um alfabeto, que quando completamente dominado, nos permitirá ler, a até então obscura linguagem, que nos á apresentada para tradução, das várias doenças das crianças.” Thomas Rotch; Pediatrics: the hygienic and medical treament of children: 1896

O que é certo é que, muito antes da era dos anestésicos e dos antibióticos, duas intervenções foram decisivas para reduzir a mortalidade infantil e foram por assim dizer os primeiros atos pediátricos: a existência de uma rede de saneamento público (água corrente e esgotos) e a vacinação. Pode pois dizer-se que em Portugal em 1812 a criação do Instituto Vacínico na Academia das Ciências por Bernardino António Gomes (pai de Bernardino António Gomes que fará parte da comissão de acompanhamento para a construção do Hospital de D. Estefânia a partir de 1860) com o fim de fornecer gratuitamente a vacina da varíola e sensibilizar os poderes políticos e a população para prevenção daquela doença, é o primeiro ato pediátrico de longo alcance.

Muitos atos e muitas figuras se lhe sucederam ,bem retratadas no livro, mas será sempre de destacar a construção e inauguração do Hospital de Dona Estefânia em 17/7/1877 (vai agora completar 145 anos), um dos primeiros do mundo construído de raiz para esse fim e a histórica figura nesse mesmo hospital, de Jaime Salazar de Sousa, primeiro professor de Pediatria na Escola Médico-Cirúrgica, o pioneiro da pediatria médica e cirúrgica hospitalar em Portugal.

A propósito das figuras da Pediatria portuguesa há uns tempos atrás pediram-me para fazer uma conferência num congresso da Sociedade Portuguesa de Pediatria intitulada: Liderança em Pediatria.

Entre algumas amenidades e considerações, que olhando com o devido recuo, poderei considerar pretensiosas pois claramente não era um perito no tema, apresentei dois exemplos aparentemente antagónicos da liderança: Os de Manuel Cordeiro Ferreira e António Torrado da Silva. Em duas situações concretas: a criação da 1.ª urgência dedicada de Pediatria separada dos adultos a meio dos anos 50 e a criação da primeira rede materno-infantil na década de 80.

Ambas tiveram consequências decisivas na saúde infantil do nosso país. Socorro-me de outros (e que outros) para os descrever, bem melhor que eu: Mateus Marques sobre Manuel Cordeiro Ferreira: “É certo que não actuou sozinho , que teve colaboradores, que teve seguidores, alguns até abnegados. Não foi, porém, o espírito de subordinação hierárquica que lhe propiciou essa colaboração. Foi a sua  autoridade natural, a sua autoridade como pessoa, como médico , como clínico, como camarada e amigo. Foi o seu exemplo…”

Carmona da Mota sobre António Torrado da Silva: “Civilizado, aceitava a diferença com curiosidade; diplomata, conseguia que os outros mudassem de opinião sem perderem a face, com uma elegância exemplar.”

Não pode haver personalidades mais diversas (também fruto do tempo em que cada um viveu) mas ambos superaram dificuldades imensas criadas pelo status quo. Ambos tiveram uma missão (a de reformar) e uma visão (como reformar) e ambos cumpriram os seus desígnios.

São estes o exemplo dos mestres que, mesmo para quem com eles nunca trabalhou, nos balizaram o caminho. Mas a estrada não é feita só destas luzes e destes sinais. É feita de outras companhias mais próximas, mais anónimas, outro tipo de exemplos, mas que nos marcam profundamente na fase de formação. E destes gostaria de, tal como na obra, destacar duas pediatras determinantes como “role model” para tantos como eu que tiveram a felicidade de com elas privar no HDE: Maria Elisa Sacramento Monteiro, sabedora, estudiosa, de uma total ausência de egoísmo e completa dedicação aos seus doentes e Lídia Gama, que levou até ao fim a defesa da dignidade do Ato Médico desde a recolha da história Clínica ao processo de estruturar o raciocínio clínico e à forma de estar e se apresentar no local de trabalho.

A história da Pediatria tem sido um desbravar de um caminho que tem permitido alargar as idades – começou na infância, passou para a idade escolar e atingiu a adolescência, e aventura-se também no campo perinatal na fase ante natal – e  especializar-se em áreas de conhecimento viradas a órgãos e sistemas, com grande diferenciação técnica. Mas há que ser cauteloso, pois a história da Medicina ensina-nos quão perigoso é trocar o todo pelas partes, pelo que há que conservar em todos os Pediatras (mesmo subespecialistas) a visão global e holística da criança. E também pensar e projetar os chamados nichos de oportunidade, zonas fronteira de intersecção de saberes que congregam subespecialidades, como já fazemos no Hospital Dona Estefânia nas áreas de Neuroinfecciologia, Ortoinfecciologia, Imunologia Clínica ou no Centro de Estudos do Bebé e da Criança entre a Pedopsiquiatria e o Neurodesenvolvimento.

Hoje olhar para o futuro da Pediatria impõe-nos uma responsabilidade e uma reflexão.

Em 1802 o poeta William Wordsworth no poema My heart leaps up tem esta estrofe premonitória : “The child is father of the man”.

Nos nossos dias estamos cientes, sobretudo depois dos estudos do epidemiologista David Barker, que tive o prazer de conhecer, da importância decisiva dos determinantes precoces pré e pós natais na doença do adulto (o conceito um pouco panfletário dos primeiros mil dias) , ou seja da subtil interação entre a “nature” e a “nurture” que, ao nível molecular, se traduz na epigenética.

É pois responsabilidade do Pediatra e da sociedade tratar bem das crianças que lhe são confiadas para que desabrochem em adultos sãos, mental e fisicamente ou dito de uma forma mais poética pela própria autora Maria Teresa Neto, noutro contexto: “A infância é um tempo dourado que é devido a todas as crianças. É onde nasce a poesia e se formam os adultos felizes que vão fazer rolar o mundo.”

A reflexão é de teor ético, e atendendo aos enormes avanços tecnológicos que permitem a sobrevivência de crianças em condições totalmente estranhas aos desígnios da natureza, impõe-se discorrer não só sobre o que se faz mas sobretudo para que se faz e como se faz.

Esta obra revela-nos que percorremos caminhos que outros desbravaram. Somos pois uns privilegiados. E duplamente por que é um privilégio ler esta história, primeiro de um trago só, depois saboreando-a. Deverá ser de leitura obrigatória para quem se aventura no labor de tratar de crianças. E os seus autores sabem do que escrevem, pois não só contam a história da pediatria portuguesa, como fazem parte (e que parte tão significativa) dessa história.

Curiosos com a obra? Podem vê-la aqui:

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