Conheço a Enfermeira Odete Santos – a Odete, para mim – desde os já longínquos tempos da Escola Primária, ou mesmo antes, mas falo em termos de memória. Era uma rapariguinha ora alegre, ora sisuda, muito senhora do seu nariz e sem papas na língua. Destas características só uma – a de ser “rapariguinha” – se perdeu.

“Naquele tempo”, como se diz na Bíblia, havia no Cadaval, pequena vila da Estremadura, onde ambos nascemos, duas escolas, uma masculina, outra feminina, como convinha aos puritanos costumes de então, apadrinhados pela Religião e pela Política.

Na primeira pontificava o mestre-escola José Maria Pais Machado, um transmontano de Bragança, sempre com a régua ou o ponteiro prontos para zurzir as palmas das mãos ou as cabeças do rapazio, (“a vingança” – entre aspas – chegou 40 anos depois quando tive que o operar às varizes…) e na Escola Feminina, no outro extremo da vila, quem desempenhava esse papel era a professora Maria Amélia, mulher do Professor Machado, que não lhe ficava atrás no que respeitava à “mão leve”.

Sem fazer a apologia da violência, digo-vos que saíamos dali a saber escrever Português, a fazer contas (havia uma célebre divisão com 20 números no dividendo e 20 no divisor…), a conhecer os rios e seus afluentes, os caminhos de ferro de Angola ou Moçambique ou a debitar por ordem cronológica todos os reis e respectivos cognomes.

Muitas coisas aprendidas de pouco viriam a servir, mas era uma excelente musculação para a memória, que nos viria a ser útil para a futura vida de estudo.

No entanto, eram tempos de pobreza, com a guerra de Espanha aqui à porta, a anunciar já a Segunda Guerra Mundial, de que é tão vividamente descrito no livro um episódio, digamos, local.

Também eu me lembro da passagem dos tanques, em manobras, pelo meio da vila, a deixarem a marca das lagartas gravadas no alcatrão, e dos holofotes da Base Aérea da Ota, ali a 30km, a varrerem à noite os céus em busca de um inimigo improvável. Nós, crianças, tremíamos. Julgávamos que aquilo era A GUERRA.

Como disse, eram tempos de pobreza em que faltava tudo e o que havia era racionado.

Muitos dos meus companheiros de escola andavam descalços e mal alimentados. Lembro-me, particularmente, de um franzino, boné enterrado até às orelhas, que fizesse o tempo que fizesse, percorria todos os dias, a pé, 5km para chegar à escola, e que, antes de pedir licença ao mestre para entrar, esfregava as plantas dos pés (que eram as suas solas) no tapete da entrada, nem sempre se livrando, apesar de tudo, de ser castigado quando chegava atrasado.

Aquilo causava-me a maior impressão, e foi assim que nasceu ali uma daquelas fortes amizades de crianças, que depois a vida se encarregou de esbater.

Aparentemente não estou a falar da Odete, mas estou, porque na escola das raparigas ela assistia e participava em cenas idênticas, que também a marcaram, como decorre das suas “confissões”.

“Naquele tempo” (outra vez a Bíblia!) não havia aquecimento no Inverno nem ventoinhas no Verão, e, muito menos, ar condicionado. Nos dias frios, com o vento a soprar das bandas da serra de Montejunto, os dedos das mãos gelavam e inchavam, e o lápis não obedecia às nossas tentativas de escrever.

Aos sábados havia Mocidade Portuguesa. Ouvíamos, entusiasmados, episódios heróicos da História de Portugal (batalha de Aljubarrota, o Decepado, a conquista de Ceuta aos “infiéis” – era assim que se dizia –, o 1.º de Dezembro e outros feitos), e, de seguida, com o coração cheio de amor pátrio, a disputar o lugar de porta-bandeira, marchávamos como pequenos soldadinhos de chumbo, enquanto na sua escola, as meninas bordavam e aprendiam a ser boas donas de casa e boas mães. Era assim…

Mas deixem-me ainda aqui recordar mais alguns episódios daquela época, tão impressionante para nós.

Divertimentos havia, poucos, mas, de vez em quando lá tínhamos cinema, ou no cineteatro ou ao ar livre, na Praça da República, com cenas próprias do “Cinema Paraíso”.

Para estas sessões cada um levava de casa, às costas, uma cadeira ou um banco, e ali ficávamos maravilhados a ver filmes de “cowboys” ou dramas de amor, alguns românticos, outros de faca e alguidar. O máximo que acontecia nos filmes de amor era o rapaz e a rapariga darem um beijo apaixonado. Não queiram saber a agitação que isto provocava, o tumulto, com os assobios, os gritos e o patear dos rapazes de 15 a 20 anos, todos sentados nas filas da frente, que assim manifestavam o seu entusiasmo naquele momento. Como as coisas mudaram…

Mas, um dia, tal como eu, a Odete veio para Lisboa. Foi um enorme choque civilizacional. De um dia para o outro deixávamos o bucolismo da terra natal e mergulhávamos na cidade frenética, de aço e cimento, com luzes e ruídos estranhos aos nossos olhos e ouvidos.

Tenho para mim, todavia, que a fusão, em épocas precoces da vida, do mundo rural e do mundo citadino, torna as pessoas diferentes, mais tolerantes (lembramo-nos dos meninos descalços, nossos amigos…), com uma visão mais abrangente da vida do que o homem ou a mulher nados e criados na cidade.

Enquanto estes são “ratos da cidade”, nós acabamos por ser “ratos do campo e da cidade”.

Só quando estive na guerra em Angola, em que oficiais, sargentos e soldados estávamos durante meses isolados no meio do mato, ameaçador, voltei a sentir um ambiente solidário, de entreajuda, em suma, verdadeiramente democrático, por muito que isto pareça um contra-senso.

Embora o objectivo do Homem, (ah! Já me esquecia) e da Mulher, nesta breve passagem pela Terra seja a Felicidade, são as contrariedades, muitas vezes a Dor, que nos burilam as arestas da Alma e nos temperam o comportamento. A ti, Odete, não faltaram contrariedades ao longo da vida, mas soubeste vencê-las com enorme coragem e firme determinação. Quando acabei de ler o livro, de uma assentada, até às 2 da manhã, exclamei para mim mesmo: “aqui está uma grande Mulher!”. É assim que te defino.

Nunca tive a sorte de trabalharmos juntos, a não ser no Desterro, mas em serviços separados. Pela sua dimensão e pelo tipo de relações humanas que ali se estabeleciam (matizadas, é certo, por algumas intrigas…) o Desterro era considerado um “Hospital de charme”. Fechou definitivamente as portas em 2007 e, hoje, os seus pátios são o parque de estacionamento de uma cervejaria. Mas as coisas são assim… Na vida não devemos ser românticos a ponto de ficarmos estáticos no tempo, nem pragmáticos a ponto de nos esquecermos que existem sentimentos. O Desterro seguiu o seu destino inexorável (afinal, tudo é finito), mas lá que, a quantos lá vivemos, nos fez pena o seu desaparecimento, fez.

Houve muita coisa da tua vida que eu só vim a saber pelo livro, confirmando afinal aquilo que eu ouvia aos teus e aos meus colegas: que eras, por assim dizer, obcecada com os doentes, de uma dedicação sem limites, procurando sempre suavizar-lhes o caminho da Dor ou o caminho da Morte. Por isso te chamavam a Madre Teresa de Calcutá.

Que beleza tem a vida de enfermeira quando atinge este grau de entrega e de despojamento de si mesma.

Há outra faceta que diz muito do teu carácter: sem qualquer complexo – para o qual, de resto, não existe a mínima razão – eras verdadeiramente amiga dos médicos, a muitos dos quais, em início da carreira, ensinavas o “B-A Bá” das técnicas urológicas. Eles, claro, pagavam-te da mesma moeda.

Como é importante, para nós, sentirmos no nosso trabalho o apoio sincero, a amizade, das enfermeiras.

Há muitas, muitas coisas interessantes no teu livro, escrito num Português simples, desanuviado, mas não vou referi-las aqui. Deixo que a curiosidade das pessoas as vá consumindo ao longo da leitura.

Duas notas finais: vai haver pessoas que não vão gostar de se verem retratadas nalguns episódios. Paciência! Prepara-te para o preço a pagar pela franqueza.

Por outro lado, alguns trechos mais picantes, mais atrevidos, esparsos ao longo do texto, podem ferir algumas almas hipersensíveis. Olha, paciência também!

Não posso terminar sem dois apontamentos pessoais: as referências bondosas que fazes a meu Pai, que te tratou em criança, e as que me fazes particularmente, que eu se calhar não mereço, mas que me encheram o coração.

Para fechar com chave de ouro vou ler a parte final do teu último poema, que muitos que aqui estão, felizmente longe da ponta final da vida, ainda não poderão sentir na sua realidade e dureza:

 

“E o Outono
Tudo faz envelhecer…
Mecanicamente
O homem lá vai varrendo
As folhas,
Lentamente,
Tristemente,
Sem dar conta,
À espera
Do seu entardecer…”

 

Pelo teu testemunho, muito obrigado, Odete!

Luiz Damas Mora
Biblioteca do Hospital de São José, Salão Nobre, 3 de Julho de 2014

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